"Break" Toutain, 2006

A Ilusão do Migrante

Quando vim da minha terra,
se é que vim da minha terra(não estou morto por lá?),
a correnteza do rio
me sussurrou vagamente
que eu havia de quedar
lá donde me despedia.

Os morros, empalidecidos
no entrecerrar-se da tarde,
pareciam me dizer
que não se pode voltar,
porque tudo é conseqüência
de um certo nascer ali.

Quando vim, se é que vim
de algum para outro lugar,
o mundo girava, alheio
à minha baça pessoa,
e no seu giro entrevi
que não se vai nem se volta

Carlos Drummond de Andrade

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Este poema de Drummond eh foda. Drummond eh foda. Ser estrangeiro - estranho - eh foda.
Não há palavra graciosa que possa refletir a dimensão de não estar de onde se é. Não há palavra de consolo que acalme esta sopa fervente de sentimentos.

Há por exemplo o sentimento de culpa. Me sinto uma desertora. Traí meu país, como a outra Marina dos livros de história (o uso de HI aqui é consequente - a ausência do trema também - o travessão entre parênteses, um crime que cometo de propósito). Traí meu país, como ia dizendo, no momento em que me despedi. Traí meu país, meus pais, minha irmã, meus amigos, meu Porto da Barra, no momento em que preenchi o formulário do registro geral deste país emprestado, sem acentos agudos nem circunflexos, sem cedilhas.

O preco que pago é um imposto diário - não ver meus amigos dancando, nao ver minha irmã crescendo, não ver meus pais quando acordo, não acordar cedo para cantar parabéns, não esperar o Daniel Lisboa R2 para voltar pra casa. Perder aos poucos minha própria língua e perder a dimensão do que é Marina, o que é cultura e o que é humano.

Não poder dizer “casa” sem culpa quando falo do apartamento em que moro, neste país emprestado, sem a sensacao de que estou mentindo, enganando, dando um tapa em minha própria cara.

Não poder dizer “casa” sem culpa quando falo do apartamento onde morei, minha mãe me dizendo para arrumar o quarto, minha irmã plantada no computador, meu pai arrastando o chinelo e recitando aquele poema grego sobre o mar, meu cachorro dormindo, minha gata importunando meu cachorro, Bina dando risada, o cheiro de comida de verdade enfeiticando. Sem a sensacao de que estou mentindo, enganando, de que perdi o direito de me referir a estes metros quadrados, de chamar qualquer coisa de lar. Meu coracao fica destamanhinho, dentro de mim tem uma outra eu que me aponta o dedo e me diz que eu dei meu lar pra adocao no momento em que passei meus livros pela máquina de raio xis do aeroporto.

Eu me despedi mesmo foi de mim - eu me deixei na minha cidade. E minha cidade se vingou de mim da forma mais seca e cruel - acabou com a jam session no MAM, cortou o cabelo, criou viadutos e shoppings. Minha cidade trocou de roupa, passou a usar óculos e me dá um pânico desgracado de nao reconhecer minha cidade na rua.

Aqui eu nao estou comigo. Eu sou uma paródia de mim mesma, um decalque provisório. Espero poder um dia abrir o jogo, sentar comigo mesma num lugar imparcial, bater um papo. Talvez eu me perdoe. Talvez eu e eu cheguemos a um acordo e decidamos que podemos nos reunir, voltar a ser uma pessoa só.

Pior - muito pior - do que este sentimento de não pertencer a este lugar, é o sentimento de que nenhum lugar me pertence. De que no momento que eu decidi me mudar eu me mudei e tudo se mudou e eu abri mão do direito de usar pronomes possessivos.